quarta-feira, 21 de maio de 2014

O dia em que descobri o capitalismo

por Pedro De Luna

O DIA EM QUE CONHECI O CAPITALISMO (AOS 9 ANOS)

Era uma vez um menino um pouco mais apaixonado do que o normal por este esporte bretão chamado futebol. Esse menino no caso era eu, mas a bem da verdade poderia ser qualquer outro. Contudo, o que aconteceu comigo lá naquele longínquo início de 1998 talvez seja uma daquelas coisas grandiosamente bobas que só acontecem na vida de uma única pessoa na galáxia mesmo. Ou quiçá, pensando melhor, aconteçam na vida de muitos, mas só alguns são supersticiosos ou bitolados o bastante pra enxergarem no ocorrido uma espécie de metáfora para o futuro, enquanto outros - os mais normais - tratam aquilo como rotina e o deletam de sua memória. Só que, meu amigo, nessa vida nada é fato corriqueiro se a gente não quiser que seja.


Enfim, vamos à história? Sim, vamos.



Eu havia recém mudado para um novo colégio e, como tal, ainda não tinha muitos amigos por ali. Não era um quadro desesperador, eu não sofria nem praticava bullying, eu não tinha nenhum destaque especial em quase nada e francamente eu estava achando aquele novo colégio uma bela merda. A vida inteira, tinha estudado à tarde e era muito difícil pra mim de uma hora para outra passar a acordar todo dia às 6 da manhã, a tempo de ver o Telecurso 2000, ouvir o galo cantar, ter de vestir um moletom azul marinho meio brega com um símbolo de uma cruz de malta vermelha no peito e sair pra aula no meio do relento da madrugada. Não era pra mim isso não.

Na vida, comecei a colecionar figurinhas muito cedo. Tive o álbum do Brasileiro de 93 e de 95, por exemplo. Me lembro de, molequinho de tudo, voltar da aula no fim da tarde e esperar ansiosamente meu pai chegar com um monte de pacotinhos - que em 93, no auge da inflação, calculo que deviam custar uns 2 milhões de cruzeiros reais cada um. Eu abria aqueles envelopes verdes com a sofreguidão e o desespero de um viciado em crack e colava aquelas figurinhas com COLA TENAZ no álbum, num ritual aliviante.

Mas havia um problema: na época do álbum do Brasileiro de 93, eu tinha 5 anos de idade. Que outras crianças de 5 anos idade em sã consciência estariam colecionando aquelas figurinhas de gente um pouco mais velha, em vez de estarem assistindo Jiraya e Mundo da Lua, e pedindo pros seus pais comprarem a tesourinha do Mickey? Eram poucas. Contava-se nos dedos. E álbum de figurinhas tem que ser moda, senão não tem jeito. Em outras palavras: eu não tinha com quem trocar as figurinhas. Não tinha contato com os moleques mais velhos e, logo, não consegui completar esses álbuns.

Mas aí veio a Copa de 98 e o seu magnífico álbum. Delineei como meta, decretei em casa que esse álbum sim, eu iria completar. Meu pai cooperou. Trazia todos os dias religiosamente uns 7 pacotinhos. De vez em quando uns 10. Pra uma criança, isso é o joie de vivre em seu estado puro. São os inconscientes delírios do consumo, acho. E isso virou uma febre lá no colégio. Nos 15 minutos dos dois recreios diários, todo mundo descia e formava uma espécie de 25 de Março no pátio. Crianças com bolos enormes de repetidas negociando trocas enquanto outras escolhiam adversários pra bater bafo. Eram muitas, dezenas, se bobear mais de uma centena.

Bater bafo. Taí algo em que eu nunca fui bom, como praticamente tudo que envolva habilidades manuais. Sempre evitei e negociei minhas figurinhas repetidas no boca-a-boca, persuadindo todo mundo na política da boa vizinhança. Digamos que esse era meu jeito de fazer diplomacia e eu considerava bater figurinhas algo meio marginal. As trocas de figurinhas eram negociadas de maneira muito acirrada, rolava uma certa tensão no ar, um clima de animosidade, afinal as crianças estavam aprendendo a lidar com os conceitos de oferta, demanda, senso de oportunidade etc.

Pois bem, passaram-se algumas semanas e minha coleção só aumentava. Além da grande contribuição paterna, eu acho que era bom mesmo na lábia de conseguir trocar as que eu queria. O bolo de repetidas já não cabia mais em um elástico e eu descia pro recreio com dois amontoados gigantescos de figurinhas nos bolsos, era ridículo. Eis que um mágico dia, percebi que me faltavam apenas 4 míseros cromos para completar o álbum. No dia seguinte, consegui mais dois. No outro, mais um. Faltava então UMA figurinha. E recebi uma notícia do meu colega de classe: "Cara, você vai ser o PRIMEIRO DO COLÉGIO a completar o álbum!".

Parentesis. Vocês têm noção do quão MANEIRO é ser o primeiro ser vivo do colégio, entre centenas, a completar o álbum? Você pode não dar a mínima pra ninguém naquele ecossistema, mas por algumas semanas você vai se sentir numa casta superior em meio a um bando de dalits sem valor e, para uma criança de 9 anos, isso é perigosamente educativo e obsessivamente instigante. Fecha parentesis.

A figurinha que me faltava para ganhar essa Corrida Espacial da Guerra Fria era a número 288, nunca me esqueço. Um zagueiro da Bulgária chamado Guinchev. "Alguém tem o Guinchev? Alguém tem o 288?", eu saía perguntando. Ninguém tinha. E a pressão social só aumentava: "O Guilherme da quinta série tá com duas figurinhas faltando só. Ele vai completar antes de você". Não, ele não vai. Ninguém tinha a maldita figurinha do Guinchev no colégio, talvez por alguma conspiração da Panini contra mim, mas eu estava disposto a dar um jeito, seja lá qual fosse.

O meu drama durou precisamente dois dias. Até ali, o Guilherme da quinta série (figura que, diga-se de passagem, eu nunca conheci) já tinha conseguido uma das duas que lhe faltavam. Ou seja: tinha empatado comigo. Era um jogo com prorrogação com direito a golden goal, um teste pra cardíacos, como diria Galvão Bueno.

Naquele dia, meus olhos marejaram quando fiquei sabendo que um menino - cujo nome esqueci - da terceira série (portanto, uma série abaixo da minha) tinha a tal da figurinha do Guinchev. Fui correndo falar com ele, era um assunto de Estado, de suma importância, e por ele ser um ano mais novo, a conversa tendia a ser mais fácil, né? Cheguei no pátio e encontrei o rapaz. Ele tinha um sorrisinho petulante no rosto e logo percebi que a negociação não seria simples. Ele sabia da minha necessidade. Ofereci 5 figurinhas - ele não aceitou. Ofereci 8 - não topou. Ofereci então 12, uma oferta monumental, que ia ajudá-lo muito, e ele manteve seu sorrisinho de Monalisa. Que desgraçado. Parti para a oferta final. Eu, que sem querer havia me tornado um magnata russo com minhas petro-figurinhas, um Roman Abramovich da escola, ofereci àquele rapaz a bagatela de QUINZE figurinhas repetidas, em troca do Guinchev.

Ele aceitou e tive certeza que esse "Sim" dele me gerou mais felicidade do que algum dia, eventualmente, um "sim" da minha futura esposa me geraria. Eu ganhei. Colei a figurinha mais importante da minha vida e vivi uma semana como um mito no colégio. Provavelmente eu não distribuí nenhum autógrafo pra ninguém nem postaram fotos no Instagram comigo (considerando que estávamos em 1998, é bem provável que não mesmo), mas nos meus sonhos tudo isso aconteceu.

Uma semana depois, ninguém mais se lembrava daquele feito. Eu já estava usando desmotivadamente aquele uniforme brega de novo, assistindo o Telecurso 2000 de novo e tudo mais. Mas o Guilherme da quinta série, esse sim, vai lembrar disso pra sempre. Mal aí, Guilherme. 

domingo, 18 de maio de 2014

Bragantino 2x0 São Paulo: A melhor pior estréia que se pode imaginar

Eu tenho um apreço especial por estréias. Além de todo o simbolismo que podemos tirar delas, seja na hora do jogo ou ao final da temporada, gosto do encontro dos times com sua torcida pela primeira vez no ano, das especulações de como o técnico montará a equipe agora e de todas as possibilidades que projetamos ali, mesmo que a probabilidade diga que aqueles serão os 90 minutos mais desorganizados de nossa equipe no campeonato.

Quando fiquei sabendo que o tricolor estrearia contra o Bragantino no Marcelo Stefani (tecnicamente o estádio agora se chama Nabi Abi Chedid, nome do patriarca que sorrateiramente controla o time, a cidade e a imprensa local há décadas, mas para mim ele terá sempre o nome daquele que doou o terreno para a construção da casa bragantina) me programei para visitar o interior paulista e comer um sanduíche de linguiça.

Bragança Paulista: um bom refúgio para o futebol
Passando por Mairiporã o 102,1 do rádio deixa de transmitir a Kiss FM e automaticamente sintoniza a rádio bragantina (controlada pela família Chedid), nos incentivando a arriscar um pouco mais nas tortuosas curvas da Fernão Dias e chegar logo a nosso destino. Além de falar bem do Massa Bruta (sim, esse é o apelido do Bragantino) e dar diversos detalhes de como o técnico deve armar o time (muito mais do que temos aqui na capital, por sinal) o Pesadão (sim, esse é o apelido do narrador), entre um elogio ao partido dos Abi Chedid e uma crítica à oposição, vai criando um clima de jogo interiorano: importante e tenso, como todo jogo de futebol deve ser, mas sem as desnecessárias seriedades que experimentamos ao ir ao Morumbi, por exemplo.

Chegando em Bragança tudo parece normal, até chegarmos ao lago do Taboão, há exatos 2.500m da entrada da cidade. Ali já se vê flanelinhas (vindos de São Paulo) guardando lugares suficientes para 2 lotações do jogo, inclusive a vaga da casa de um amigo meu na qual eu planejava estacionar meu carro. Impedido pela máfia flanelística paulista, me dirigí à rua adjacente à principal, mais próxima do Marcelo Stefani, onde havia lugares vagos de graça. De lá subi a pé a última ladeira antes de avistar o local no qual aqueles mesmos times tinham decidido o Campeonato Brasileiro 23 anos antes.

Marcelo Stefani: onde todas as gerações se encontram
Não foi difícil encontrar o Serginho (esqueci de contar-lhes a respeito do Serginho: um amigo meu de uns 60 e poucos anos que mora em Bragança e me ensinou que Canhoteiro era tão bom quanto ou melhor que o Garrincha) e de lá rumamos para o portão 2, por onde habitualmente entra a torcida das numeradas (ou arquibancadas cobertas, vendidas a R$ 40,00  e que dão direito a comprar o carnê pro resto do campeonato por R$ 20,00). Infelizmente neste ano alguém decidiu resolver o problema de brigas entre locais e visitantes que nunca existiu e dividiu a a numerada ao meio, o que nos fez ser barrados na catraca.

Enquanto nos informávamos a respeito do novo portão para os são-paulinos começamos (o Serginho começou, eu sou tímido demais para começar uma conversa com um desconhecido, apesar do futebol ajudar nesse aspecto) a bater papo com um senhor com a famosa camisa da época de Mauro Silva, Luxemburgo e cia, expressões de quem havia muitas histórias pra contar e uma simpatia invejável. Tratava-se de um são-paulino que havia nascido e crescido em Bragança e, mais do que isso, jogado no time da cidade nos idos dos anos 50. Infelizmente alguém "lá de dentro" logo apareceu liberando sua passagem, de modo que só pudemos ouvir dois causos de nosso interlocutor antes de sairmos em busca de nossa nova entrada, sem nem mesmo anotarmos seu nome e em que ano exatamente fez parte do esquadrão local. Me martirizo até agora por esse irreparável erro jornalístico (não estou acostumado a ser jornalista), mas tento dormir pensando que se tivesse seu nome, o Google provavelmente me contaria que eu não tive uma conversa com alguém tão interessante e importante pra história do Braga quanto eu de fato tive, o que seria uma decepção ainda maior.

A entrada lateral era uma completa gambiarra, e exatamente por isso funcionava: as filas de dois setores se misturavam para se desmisturar na boca das catracas, separadas por cercas de arame e um amontoado de material de construção (que provavelmente seria usado para finalizar as obras da arquibancada descoberta até o final do Paulista). Na revista os problemas de sempre, em especial quando a organizada está com você: pode isso, não pode aquilo, boné com tal símbolo é proibido, a menos que você tenha carteirinha com não sei qual outro, etc.

Ao sentarmos no confortável (pelo menos até os 15mins do 1o tempo) e rústico cimento das numeradas comecei a imaginar que futebol era aquele que permitia que um Campeonato Brasileiro se decidisse ali, num estádio tão simples e que possibilitava que o futebol fosse vivido tão cruamente. Quando me preparava para passar a linha entre saudosismo do bem e saudosismo do mal, voltei à realidade com uma boa notícia: a confirmação de que teremos pelo menos mais uma geração apaixonada por este jogo. Um homem e seu pai que estavam sentados atrás de nós viram seus dois descendentes subirem aqueles enormes degrais com uma facilidade só acessível a menores de 16 anos gritando "Pai, pai, eu vi o Rogério Ceni de perto!", "E o Ganso, vô!"

Estréia, estréia, futebol a parte

De dentro do campo pouco a acrescentar, se entramos no jogo com esperanças do que Muricy nos traria para este ano, empolgados com novos jogadores e sedentos por uma apresentação tricolor, saímos de lá tentando nos convencer de que aquele jogador que havia assinado há 6 meses mas só pôde estrear agora - e que valia a pena tanta espera - só tinha tido um dia ruim, mas que ainda resolveria nosso problema na lateral direita. A apresentação tricolor virou alvi-negra (com toques amarelos), com um contra-ataque extremamente bem treinado (desde 17 de Dezembro do ano passado, diga-se de passagi) que matou o jogo e nos mostrou que o ano é novo, mas os problemas são velhos. Que venha o próximo jogo!